2.11.11

Identidades Trocadas: Molière e La Fontaine

O cemitério parisiense de Père Lachaise é, certamente, o local mais cobiçado para última morada da maioria da população ocidental, mas nem sempre foi assim.
Durante o século XVII os inúmeros cemitérios de Paris estavam completamente saturados, pelo que, em 1786, foram extirpados do interior da cidade, tendo as antigas ossadas sido transportadas para as galerias das antigas pedreiras, que se tornariam nas Catacumbas de Paris.
Para os novos enterramentos foram criados quatro novos cemitérios, rodeando a cidade nos quatro pontos cardeais: Norte, Oeste, Este e, mais tarde, Sul.
O Cemitério Este, mais conhecido por Cemitério de Pére Lachaise, foi criado por Napoleão I em 1804; ocupa toda uma encosta e recebeu o nome do padre confessor de Louis XIV, que habitou numa residência jesuíta no local onde fica presentemente a capela.
Pertencendo a uma nova escola onde os cemitérios tentavam ser representações terrenas de Arcádia e Campos Elísios, Père Lachaise era um cemitério muito diferente daquilo a que a população estava habituada. Para além disso, era também o cemitério mais afastado do coração da cidade, pelo que poucos eram os cidadãos que pretendiam ser aí enterrados.
Nos seus três primeiros anos de existência não havia mais de sessenta pessoas ali enterradas, sendo que hoje o número é cerca de um milhão.
Procurando aumentar-lhe o prestígio de forma a tornar o espaço mais apelativo, Nicolas Frochot decidiu propor a transladação de alguns dos mais famosos parisienses para Père Lachaise.
Entre os escolhidos para serem inumados no novo cemitério encontravam-se o dramaturgo Molière e o escritor La Fontaine, cujas ossadas estavam em exposição no Museu Nacional dos Monumentos Franceses.

Em 1673, enquanto actuava, Molière sentiu-se mal em palco. A personagem que representava era um homem doente que acabava por morrer em cena. Os seus espasmos - reais - foram interpretados pelo público como fazendo parte da peça e, cerca de uma hora depois de sair de cena, Molière morreu.
As regras da igreja ditavam que os actores - à semelhança dos heréticos, feiticeiros, usurários e pagãos - não podiam ser enterrados em solo sagrado, o que levou a viúva de Molière a apelar às autoridades eclesiásticas e ao rei de França, procurando que fosse aberta uma excepção que permitisse o enterramento cristão ao falecido.
O rei intercedeu junto da Igreja e, quatro dias após o óbito, obteve-se autorização para inumar Molière no cemitério de Saint Joseph, numa cerimónia nocturna.
Consta que, logo que a multidão que se reuniu para acompanhar o actor e dramaturgo à sua última morada se desmobilizou, a sepultura voltou a ser aberta e o corpo de Molière foi retirado e enterrado noutra zona do cemitério, numa vala comum para não-baptizados.
Tudo o que ficou registado é que Molière foi enterrado algures no interior do cemitério de Saint Joseph, sendo que após o registo inicial se encontraram vários aditamentos e notas, referindo a trasladação dos restos mortais de Molière, notas essas muitas vezes contraditórias. Julga-se que em 1750 ele foi transferido para o interior da igreja, mas mesmo isso acaba por não esclarecer se ele voltou a ser enterrado no local original ou se foi enterrado noutro espaço qualquer do cemitério.
Em 1792, quando foi tomada a decisão de exumar os corpos de La Fontaine e Molière, ninguém conseguia dizer exactamente onde o dramaturgo estaria enterrado.
Assim, os comissários encarregados da exumação decidiram abrir uma sepultura num talhão dos não-baptizados e dela foi retirado um esqueleto que, etiquetado como sendo de Molière, foi colocado num novo caixão e arrumado na cripta da igreja de Saint Joseph e mais tarde num armazém até 1799, quando foi transferido para o Museu Nacional dos Monumentos Franceses e deixando em exibição publica até 1817.
Durante esses anos, este falso Molière teve por companheiro um falso La Fontaine: os mesmo comissários responsáveis pela exumação do primeiro tiveram a tarefa de localizar e exumar o segundo; por isso, desenterraram outro corpo no mesmo local e disseram que se tratavam dos restos mortais de La Fontaine.

Considerando todos os factos apresentados, a probabilidade do esqueleto ser realmente de Molière é ínfima.
Já no caso de La Fontaine, a probabilidade das ossadas serem dele é simplesmente nula.
La Fontaine faleceu a 13 de Abril de 1695 tendo sido enterrado no cemitério de Les Innocents e não em Saint Joseph. A localização mais provável para as suas ossadas é o interior das Catacumbas de Paris, anonimamente perdido entre cerca de seis milhões de parisienses.
Assim, em 1817, "Molière", "La Fontaine" e os célebres amantes Héloïse e Abélard foram recebidos com pompa no novo cemitério.
A estratégia resultou: em menos de um ano, os talhões de Père Lachaise eram os mais cobiçados da capital francesa. Père Lachaise populou-se - sobrepopulou-se! - tendo-se tornado o local de eterno repouso de muitos populares e famosos, franceses e estrangeiros, que habitaram ou morreram em Paris, sendo um marco incontornável no mapa internacional do necroturismo.
Ainda assim, dentro dos túmulos dedicados a Molière e La Fontaine, estarão apenas parisienses anónimos.

2 comentários:

  1. Por meio de um amigo Facebook Eu vim para o seu blog. O pouco que li e gostava de mim, com sua permissão vou continuar vindo. Saudações!

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  2. Por meio de um amigo Facebook Eu vim para o seu blog. O pouco que li e gostava de mim, com sua permissão vou continuar vindo. Saudações!

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